
Os novos empreendedores de São João de Meriti
por Nathália Braga
É 1983. Uma menina brinca pela casa enquanto o jovem casal Helenice e Dermeval celebra a gravidez da segunda criança. Sem temer o lento crescimento de São João de Meriti, a família escolheu a cidade para morar. Reconhecida pela vizinhança pelo caprichoso trabalho de manicure, Helenice precisa abandonar a profissão por conta da gestação para confeccionar bijuterias. É neste momento que, após uma súbita demissão, Dermeval se junta à esposa para comercializar as joias pela Baixada Fluminense afora.
Respirando ares de empreendedorismo, nasce Liliane Moraes, criadora de uma casa de festas infantil e designer de moda. O divórcio dos pais veio junto com o início da adolescência, e desde então o trio de mulheres da família Moraes conduz seus negócios.
A empresária conta que já operou máquinas complexas de costura com apenas 12 anos de idade e experimenta diferentes profissões sem abandonar o solo meritiense.
Atualmente, o município de São João de Meriti possui 478 mil habitantes e é um dos locais mais populosos por metro quadrado da América Latina. Com quase setenta anos de fundação, a cidade já foi motivo de procura nacional devido à fama do bairro Vilar dos Teles, mais conhecido como a ‘Capital do Jeans’ dos anos 80. Nesta época, a família de Liliane decidiu confeccionar mochilas para revender nas disputadas lojas da região. Com o sucesso do comércio, mãe e filhas abriram juntas uma loja. A poucos metros dali, a inclinação de um prédio das redondezas virou notícia. O motivo: excesso de equipamentos de costura pesados dentro do imóvel.
Mesmo durante as quase duas décadas da ‘febre’ da Capital do Jeans, o trio não teve descanso. “Tivemos confecção de roupas, fizemos terceirização de serviço com bordados computadorizados, abrimos lojas de roupas e após 10 anos acabamos entrando no ramo de festas infantis”, narra Liliane. A casa de festas ‘Estrelando’, inaugurada em 2014, é reflexo da inovação, que supera as crises.
Aos 34 anos, Liliane comemora o sucesso do salão, projetado para agradar às crianças e seus responsáveis. Os pacotes oferecidos contam com buffet, catálogo de temas infantis, camarim, parque de diversões e todos os recursos necessários para que os pais aproveitem a festa tanto quanto os filhos. Já Lilian, que ocupa as posições de sócia e irmã, é administradora e está atenta às tendências de marketing e decoração.

A casa de festas infantis 'Estrelando' atrai clientes de toda Baixada Fluminense
(Foto cedida por Liliane)
Novos laços
Mais uma tarde de outono em Jardim Meriti. Atrás do balcão de atendimento da barbearia, um homem reveza entre o computador e um copo metálico, onde deposita uma mistura de suplementos alimentares com hora marcada para ser ingerida. À sua frente, dois colegas de trabalho dão risada e jogam sinuca ao som de música sertaneja, porém este não é o foco da atenção do balconista, que permanece sério e concentrado no preparo da bebida.
O próprio Leonardo Silva não acreditaria se alguém lhe descrevesse tal cena há sete meses. Convidado por André Luiz Araújo, que literalmente sonhou com a ideia do empreendimento, ele é sócio da barbearia Vicenzo. O acolhimento é mútuo: ao mesmo tempo que Leonardo, nascido e criado em Vaz Lobo, conhece Meriti, a cidade lida com o conceito de ‘barbershop’, que até então só aparecia nos filmes de Hollywood.
Leonardo estima que tem pelo menos 11 irmãos, porém conhece apenas três. A dúvida é reflexo da ausência paterna, segundo ele. “Só sei que era um policial civil por foto”, lamenta. Após cursar a segunda metade do ensino básico em uma escola particular do subúrbio do Rio com o auxílio de uma tia, o jovem quase seguiu os passos do pai. A um ponto abaixo de seus concorrentes, não conseguiu ingressar na Polícia Militar do Rio de Janeiro, mas cogita a trilha universitária após anos de trabalho em projetos de engenharia.
Salvador, Porto Alegre e outros famosos destinos de viagem já foram o escritório de Leonardo até o retorno ao Rio, para cuidar da saúde da avó. Desempregado, foi na igreja onde conheceu o empresário André, que lhe ofereceu uma oportunidade de emprego na área de telecomunicações. Desde então eles se consideram pai e filho, embora já tenham brigado. Para os criadores do Vicenzo, cuidado e masculinidade não são palavras rivais.

Mínimos detalhes
“Você sabia que existe shampoo, cremes e tratamentos ‘pra’ cabelo e barba?” conta o jovem aos risos enquanto aponta frascos em prateleiras cuja fabricação é própria e sustentável. Através de ‘pallets’, base de madeira utilizada principalmente em locais de estocagem de produtos, um sofá, armário e até uma porta foram construídos pelos empresários. E o rigor não está apenas no visual da barbearia. Para contratar funcionários, André e Leonardo exigem formação em cursos reconhecidos de cabeleireiro e barbeiro, e também estudaram sobre o assunto para avaliar os candidatos.
A busca pelo conhecimento também levou outro Leonardo a empreender. O meritiense Leonardo Morgado (26) é criador da marca Bidog, uma lanchonete que começou através de uma carrocinha de cachorro quente na rua da prefeitura da cidade. Sem conhecimentos sobre culinária, Morgado pediu demissão no emprego de corretor de seguros e convidou o amigo Guilherme Fernandes (28) para trabalhar pelo menos doze horas por dia. “A gente começou do nada. Não tinha dinheiro pra começar, eu até vendi algumas coisas que tinha. A gente acordava e ia do mercado direto ‘pra’ carrocinha.”, resume Morgado.
O “tiro no escuro” já possui resultados. Dois anos após o início do Bidog, Guilherme e Morgado já têm 23 funcionários, receitas patenteadas e planejam transformar a marca em uma franquia. A primeira lanchonete Bidog fica no bairro da Vila Rosali a poucos metros da casa de Morgado, que é filho de um engenheiro e de uma dona de casa. Presente no momento da entrevista após retornar de um passeio, a mãe do empresário não precisa mais correr para cortar pães ou lavar a loja do filho, como era costume no início do negócio.
Infelizmente, além de serem casos de sucesso, ‘Bidog’, ‘Estrelando’ e ‘Vicenzo’ tem outra questão em comum: a falta de segurança. Na última década, São João de Meriti, assim como toda Baixada Fluminense, Niterói e São Gonçalo, têm sofrido com a onda de violência após a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), instaladas em favelas da cidade do Rio de Janeiro.
A ‘migração’ dos crimes deixa rastros. Em um levantamento do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) do ano passado, a Baixada Fluminense apresenta aumento de 30% na taxa de homicídios, sendo Duque de Caxias a cidade com maior índice. No relatório mais recente, o de abril de 2017, São João de Meriti registrou 21 casos de homicídios. Em busca de segurança, comerciantes de São João de Meriti chegam a pagar 50 reais por semana a policiais militares para fazer rondas em seus empreendimentos e até mesmo vigiarem o fechamento das lojas. A prática é cada vez mais comum pela cidade.
Liliane Moraes relata que frequentemente precisa ceder imagens das câmeras de segurança do Estrelando para investigações de crimes próximos ao salão, e por isso todos os seus funcionários são da Baixada. “É uma exigência nossa, pois eles saem muito tarde das festas e como anda muito perigoso, é melhor que eles morem perto”, revela preocupada. O perigo nas ruas antecipa o fechamento da barbearia Vicenzo, que por pouco não foi local de um assalto planejado:
- Umas oito horas da noite eu estava trabalhando aqui, entrou uma mulher que (estava), desculpe falar, uma roupa totalmente vulgar, entrou e falou assim: “Posso tomar uma cerveja?” e eu falei que podia. Ela falou “Senhora, não. Você pode me chamar de ‘você’”. Aí ela pegou o telefone e começou a olhar para a loja toda, depois começou a falar coisas ‘nada a ver’, até que pediu pra tirar uma foto comigo. Eu disse “Mas a senhora não tá falando com o seu marido no telefone?”. Ela ‘se enrolou’ dizendo que era só um ficante dela - mesmo chamando de “amor” -, que estava bebendo não sei aonde e queria tirar uma foto com um “morenão assim desses” pra ‘botar’ ciúme. Falei “eu não sei nem quem a senhora é, o que a senhora faz, o seu marido pode ser um ‘polícia’, matador, sei lá o que, encher a minha loja de tiro, aí eu morro e nem um filho eu vou ter. Vai antecipar tudo...”. Aí ela ‘se ligou’, e foi embora.
Mesmo com as dificuldades, os empresários sonham grande. Além de levar a barbearia Vicenzo a pelo menos outros dois bairros da Baixada Fluminense antes de chegar ao centro do Rio, Leonardo planeja abrir a própria loja de suplementos em breve. Com novas receitas de doces inspiradas em restaurantes de áreas nobres do Rio, Morgado diversifica o ‘menu’ do Bidog. Para os empreendedores de São João de Meriti, a crise nacional praticamente não existe.
De terça a domingo, os funcionários da 'Vicenzo Barbershop' atendem aos clientes (Foto: Reprodução Facebook)
A receita diferenciada garantiu o sucesso da 'Bidog'
Foto: Reprodução facebook