
Em meio à crise, o Centro de Educação de Jovens e Adultos ainda é um retrato da diversidade brasileira
por Nathália Braga
Dizem que ônibus não é lugar de leitura, mas é exatamente o sacolejo do veículo que embala os estudos de Maria de Fátima, que é cozinheira, manicure, mãe de dois filhos e agora também avó. Ela dispara do trabalho em direção ao Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) de Madureira, localizado na tradicional escola Carmela Dutra, Zona Norte do Rio de Janeiro. Só nesta unidade, pelo menos outras 200 pessoas embarcam por ano nesta mesma rotina, que tem como destino a conclusão dos ensinos Fundamental e Médio.
No início dos anos 2000, foi Alexandre Reis quem cumpriu essa jornada. Com o incentivo dos professores, o estudante cursou todo o ensino básico e resolveu se tornar professor de geografia. A decisão de seguir os passos inspirados na carreira de Léa, a diretora da unidade, sofreu alteração, mas ainda assim o historiador comemora. Além de dividir o espaço de trabalho com a maior referência de professorado que teve na vida, Alexandre também leciona para crianças de Duque de Caxias pela rede estadual de ensino.
Tradição sob ameaça
Léa acompanha o CEJA Madureira desde 1982, o ano da inauguração. “Nós já lotamos a quadra no dia da matrícula”, relembra orgulhosa a diretora, que começou o trabalho como professora de Geografia. O sorriso de satisfação só desaparece para dar lugar à preocupação com o futuro do CEJA. A atual crise político-econômica do Rio de Janeiro ameaça a continuidade da rede. Neste ano, somente o primeiro semestre contou com o recebimento de verbas. Para não fechar as portas, o Centro de Educação optou por não abrir mais vagas e manter os estudantes atuais.

Léa, atual diretora do CEJA Madureira
“Vocês não viram essas ocupações que tiveram (em 2016)? Aqui os alunos ocuparam para funcionar a escola.”, enfatiza Patrícia Caraúna, a orientadora educacional da unidade. Com o anúncio das dificuldades, os alunos passaram a trazer materiais de papelaria, limparam a escola e até pediram providências à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. As notícias, no entanto, não são animadoras: a unidade CEJA de Coelho da Rocha, em São João de Meriti, já fechou as portas. Outras estão prestes a seguir o mesmo exemplo.
Apesar de contar com rampas de acessibilidade e piso tátil, o CEJA não tem mais condições de oferecer ensino às pessoas com deficiência auditiva e visual desde o início da crise econômica. A administração da rede optou por dispensar os profissionais capacitados em Braille e Libras, deixando assim o material didático inutilizado no mesmo ano em que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) abordou os "desafios para a formação educacional de surdos no Brasil" como tema de redação.
Como funciona
O site da Fundação Cecierj (http://cederj.edu.br/ceja/) cataloga a lista de unidades do CEJA com endereços e telefone para contato. As pessoas interessadas no curso precisam comparecer à escola escolhida para efetuar a matrícula, e todos os estudantes têm direito a um cartão Riocard de gratuidade nas linhas municipais de ônibus do Rio de Janeiro para comparecer às atividades. Ao contrário do modelo EJA (Educação para Jovens e Adultos), o CEJA permite que os alunos concluam uma disciplina de cada vez sem aulas, porém levam apostilas para casa e podem resolver dúvidas individualmente com professores antes da avaliação sobre cada unidade, que é de múltipla escolha.
Segundo Alexandre, as grandes vantagens do sistema são a flexibilidade de horários, o atendimento individual e a autonomia dos alunos. O CEJA Madureira, por exemplo, funciona das 9h às 21h e os todos estão livres para estudar e realizar provas ao longo do dia. O interesse prévio dos estudantes transforma os desafios do retorno à escola em uma oportunidade para aprender a selecionar prioridades de acordo com o próprio ritmo. Dependendo do desempenho, é possível concluir o ensino médio em 5 meses ou dois anos, pois cada aluno pode tentar a mesma prova até três vezes.
Segunda chance
O maior desafio do CEJA não está em suas provas: quase todos os alunos precisam conciliar os estudos, trabalho e o cuidado com a família. A conclusão tardia do ensino básico é reflexo da evasão escolar, necessidade de sustento, gravidezes ou até mesmo do machismo, como conta Léa: “Nós já tivemos uma aluna idosa que vinha escondida e, quando a gente precisava telefonar para ela, era preciso mentir o motivo da ligação. Fingíamos que era cobrança, reunião, qualquer coisa. Ela guardava muito bem os livros didáticos dentro de casa e só saía com eles quando nem o marido, nem a família, estavam (presentes)”, relata.
São essas as histórias, além da própria, que movem Alexandre Reis. O historiador se intitula “professor social” quando atua no CEJA e acredita que sua missão é reinserir as pessoas na ‘sociedade do conhecimento’. “Às vezes o aluno não consegue ir bem em uma matéria e eu pergunto o que está acontecendo com a vida dele, tem um ‘quê’ de psicólogo (risos). São muitas possibilidades de atuação para alunos que vêm com ‘N’ problemas e eu gosto de colocar o cotidiano deles dentro da matéria. É assim que eu explico guerras e a História do Brasil”, revela.
Maria de Fátima ingressou no CEJA com um objetivo: utilizar seu diploma para ingressar em um concurso público e ter a aposentadoria que o trabalho informal não oferece. As dificuldades enfrentadas vão desde a idade avançada e não ter mais a “cabeça fresca” ao barulho que a brincadeira dos netos gera. Fátima garante, entretanto, que a tarefa não é impossível. Determinada, ela mostra suas anotações junto ao material: “‘Botei na cabeça’ que até quarta-feira eu vou eliminar esse livro. Semana que vem eu vou começar outra matéria”.
Trajetórias como a de Alexandre não são tão raras assim, e por isso foi criada a Semana do CEJA. Uma vez por ano, ex-alunos e funcionários se reúnem para relatar suas histórias. As pessoas fazem questão de, se aprovadas no vestibular, retornarem à unidade para contar a novidade. Até a ideia de ‘vitória’ é diversa: há quem começa a graduação, entra em um concurso público, conquista um emprego melhor ou ‘simplesmente’ aprende a ler as notícias nos jornais e explicar a lição de casa aos netos. Dependendo da localidade, o CEJA também é fonte de educação para pessoas em situação prisional.
Conheça as diferenças entre o CEJA e o ENCCEJA
Neste ano, o ENEM não será mais referência na certificação de Ensino Médio para candidatos com mais de 18 anos. Apesar da fama do exame, somente 7,7% dos candidatos que se inscreveram com este objetivo alcançaram a pontuação necessária, conforme revela o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). É por isso que o Exame para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) volta a ser a prova capaz de certificar os ensinos fundamental e médio.
Mais flexível, a prova acontecerá em dois turnos no próximo domingo (19) e, assim como no CEJA, as aprovações são divididas por cada disciplina. Mas, as aproximações terminam aqui. Por mais que os nomes sejam parecidos, o CEJA e o ENCCEJA não têm relação alguma, mas quem não conseguir a pontuação suficiente para concluir o curso pelo ENCCEJA pode terminar as disciplinas restantes pelo CEJA, sem aguardar outra edição da prova, no ano seguinte.
O governo também já anunciou que os participantes que obtiverem sucesso no ENCCEJA ganhará isenção no ENEM de 2018. Enquanto isso, há material de estudos para a prova disponíveis no portal do exame. Neste ano, cerca de 1,5 milhão de pessoas farão a prova.
Imigrantes e refugiados: presentes
O jovem angolano de 23 anos Selemani Delphin Gracia também frequenta o CEJA. Magro e tímido, ele aceitou parar de prestar atenção no filme exibido na sala de espera da escola para conceder a entrevista. Para cursar o ensino médio, ele vive uma jornada tripla: trabalha na Zona Sul do Rio de Janeiro, estuda em Madureira e mora na Penha, na Zona Norte. Desde que chegou ao Brasil, há quase três anos, Selemani busca condições melhores de vida, sobretudo financeiras. Embora tenha deixado Angola com o ensino médio concluído, o rapaz precisa de uma certificação brasileira para regularizar o visto e tentar cursar o ensino superior. Ele aposta em cursos como Relações Públicas, Marketing ou Recursos Humanos.
Quando questionado sobre a maior dificuldade de recomeçar a vida em um país novo, Selemani resumiu em uma palavra - o idioma. Ele explica: apesar de bilíngue, suas fluências são em francês e outro idioma regional. Logo após a entrevista com Selemani, outro estudante do EJA comentou: “A irmã dele também estuda aqui. Não sei se é irmã, mas eles não são do Brasil e sempre estão aqui”. Atualmente, a Língua Portuguesa é o 5º idioma mais falado do mundo e um dos países que possui o português como língua nativa é Angola. Sendo assim, a menos que Selemani tenha se equivocado durante a entrevista, ele mentiu. Nos últimos anos, Madureira tem sido local de trabalho para muitos africanos, principalmente mulheres trancistas, ao passo que as praias cariocas contam com vários homens exercendo a profissão de vendedores ambulantes.
Quer seja o nome de Selemani verdadeiro ou não, ele está muito mais associado a pessoas congolesas. Ao contrário de Angola, o Congo tem o francês como idioma e também são muitos os congoleses que, por diversas razões, passam a viver no Brasil. Esta é apenas uma peça do grande mosaico de histórias de vida e culturas que o CEJA concentra. Sem querer, o Centro de Estudos para Jovens e Adultos retrata o Brasil como poucos lugares conseguem.